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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

JUDAS, EMBAIXADOR DA TRAIÇÃO, DÁ UM PASSEIO POR MANAUS


Quando Judas Iscariotes chegou ao limbo – porque, tendo cumprido sua missão, a de delatar Jesus, para que fosse capturado e crucificado como queria o Pai, obteve um abrandamento da pena, mesmo tendo se suicidado – recebeu uma espécie de prêmio.

A cada ano escolheria uma cidade, na qual desceria, e passaria um dia, para assim entender como os homens estão utilizando o recurso da traição, o seu legado para a Humanidade. Judas seria assim, um tipo de Embaixador da Traição entre os homens. E ele sempre vem no sábado de aleluia.

Judas, mais que qualquer outro, sabe da importância de trair. Sendo a traição ao outro algo impossível, só nos resta a traição filosófica – trair a si mesmo. Por que trair ao outro é impossível, perguntou, certa vez, um marido curioso, em uma mesa de bar, numa cidade de interior que Judas escolheu para passar as suas férias laborais. E ele respondeu:

“Trair o outro é impossível porque o outro é sempre outro. Não dá para trair a pessoa com quem fizemos o pacto ou acordo, porque quando mudamos nossa atitude, ela também já mudou a dela, é outra. Mesmo que ela não tenha percebido e ache que foi traída.”

Nesta semana santa de 2010, Judas, curioso com as movimentações pré-eleitorais, e com o noticiário terreno, mostrando que todos os caminhos levam à Amazônia, terra rica, que recebe de braços e bolsos abertos o estrangeiro, e onde o ouro jamais reluz para o caboclo, resolveu passar o seu sábado nas quebradas da velha Manaus.

PARTE I – A VIAGEM

Ao chegar, ainda à madrugada, deu de cara com filas de moradores com baldes e garrafas PET, em carrinhos de mão ou carregadas à própria. Logo entendeu. Era uma fila para buscar água. Que só era oferecida até às 06h da manhã, e depois, só vento nas torneiras comunitárias do bairro da zona Norte.

Subiu num ônibus, que pregou menos de dois quilômetros depois do início da viagem. Judas estranhou, pois por fora, o ônibus era recém pintado, diria novo mesmo. Mas o barulho do motor, segundo um passageiro, denunciava. “Isso é motor batido”. Sinal de que o veículo não demonstrava por fora a idade que realmente tinha, pensou Judas.

Seguiu seu caminho um pouco à pé, até que conseguiu carona com um casal evangélico que estava indo à sua igreja. No caminho, ouviu um programa de rádio onde todo mundo era amigo de todo mundo, e falavam de uma cidade linda, perfeita, bela, praticamente o paraíso na terra. “É o programa matinal de rádio do governador”, disse a mulher, com um sorriso.

Judas também sorriu, já sentindo o “clima”. Desceu na frente de uma igreja, onde o pastor gritava o nome daquele que fora crucificado. O pastor pedia contribuições para a obra, mas não queria moedas nem notas de pequeno valor. Anunciou também a candidatura do seu irmão, também pastor, nas próximas eleições, como o candidato ungido por Deus. Judas sorriu, sarcástico, e pensou que no seu tempo, 30 moedinhas resolviam a questão.

Depois de mais um ônibus que, aos trancos e barrancos, chegou ao centrão da cidade, Judas foi para o Mercadão, donde deu um rolé pelas barracas. Muitas ervas, peixes, barracas de artigos para turista. Judas observou que, numa cidade banhada pelo maior rio do mundo, o peixe fosse tão caro. Mais: achou um absurdo que todas as frutas, verduras, legumes, e até a farinha – que estava pela hora da morte! – vinham de fora. Mas o Amazonas não era um celeiro em desenvolvimento, como dizia o cartaz do Zona Franca Verde, pregado na entrada do mercado?

Sentou um barzinho, contou suas moedas, magicamente transformada em reais, e pediu um legítimo prato feito do mercadão: deliciou-se com um jaraqui fritinho, baião de dois, farinha de ova, pimenta murupi, tucupi, e uma cerveja geladíssima, para matar o calor!

Dado o tempo necessário para que a comida sentasse – afinal, não era todo dia que se refestelava com iguarias culinárias – Judas pagou, e saiu a caminhar. Deu uma verdadeira volta pela cidade, caminhando, observando as pessoas, o movimento. Viu as ruas sem calçada, e a batalha entre pedestres e motoristas. Viu gente andando pelas ruas, artistas dos sinais de trânsito.

Parou para pedir água em uma lanchonete, mas teve de desembolsar para bebê-la. No entanto, mais à frente, experimentou a solidariedade de uma tacacazeira, paraense, que vive do seu trabalho em Manaus há décadas, e que lhe ofereceu uma cuia do saboroso sumo da mandioca, com muito jambu e camarão, enquanto conversavam sobre a xenofobia de muitos amazonenses, incentivada por praticamente todos os meios de comunicação. Quis pagar pela cuia, mas a paraense, sorridente, disse que pela conversa agradável, estava mais que bem pago.

Foi se achegando, sempre à pé, pelas quebradas da zona Leste de Manaus. E sentiu a diferença. Embora carente de infraestrutura, e marcado pelos sinais da pobreza, Judas foi vendo que as pessoas ali não se rebaixavam, a despeito da “traição” dos governantes.

Em uma taberna, onde havia entrado para comprar uma água geladinha, pediu à atendente que deixasse ele lavar as mãos na torneira. “Ô moço, desculpa aí, não tem água, não”, ouviu. “Mas pera lá que vou pegar um pouco no balde lá atrás, pra tu te lavar”. Voltou com a água, que Judas usou para se refrescar nos pés, mãos, e molhar os cabelos e barba. Enquanto se molhava, ouviu lá do fundo uma voz masculina. “Regina, tu tá gastando a nossa água dando pros outros tomarem banho?”. Ao que a moça respondeu: “Tou sim, ajudar os outros é coisa de Deus. E não vem com mesquinharia não. Se falta água aqui é porque tu votou naquele prefeito que privatizou a água. E continua votando. Então, não reclama”.

Judas sorriu, agradeceu, e saiu. Já sentindo que sua missão estava por terminar, junto com a tarde que ia findando, resolveu parar num bar, para molhar a garganta com uma gelada.

PARTE II – UM DIÁLOGO

No bar:

Homem (com o último pedaço de tapioca entre os dedos, gesticulando muito) – Rapaiz! O Braga tá seguro pro Senado, e vai querer levar o Arthur! Tou te falando! Até a Vanessa já tá sentindo a pernada! Não adiantou nada ela e o Eron passarem pru lado do cara. Vão terminar concorrendo pros mesmos cargos de sempre, e inda vão perder, por ter traído os ideais comunistas!

Outro homem (dando uma risada gutural e soluçante) – É, uma trairagem só, mano! Num vê o Braga? Tá pensando que ganha eleição sozinho aqui! Só foi reeleito graças ao Lula, e agora, passou a rasteira pra colocar o Omar como candidato do sistema. Mas o Lula também, querer colocar o Alfredo! Esse, aliás, que só virou ministro dos transportes por falta de opção, e ainda foi trairado na hora da sucessão: colocaram o tampão do Carijó no lugar dele.

Mais outro homem (tomando uma caninha) – Agora, traído mesmo foi o Sarafa! Abandonado pelos aliado na época da eleição. Aí teve de se juntar com a direitona manauara, sair abraçado com Pauderney e Arthur. Trairagem, mano!

Homem – Que, nada! O Serafim traiu as esperanças do povo! Traiu quem elegeu ele e esperou muito mais dele como prefeito. Tá certo que melhorou um pouquinho, só um pouquinho, o transporte, e a saúde. Mas nas outras coisas o home foi fraquinho, fraquinho. No mínimo, foi igual aos outros. Foi como disse o Praciano: o Sarafa colocou o paletó no velhinho, que já tava de pijama. Agora aguenta o Negão!

Mais um Outro homem (querendo concluir) – É, mas quando teve a chance de se mostrar como diferente para nós, eleitores, o Praça também se encolheu. Traiu a sua história de luta e fez uma campanha amarela, amarela. Mas a verdade, gente, é que se nós continuar a discutir quem trai quem nessa política do Amazonas, a gente vai até o Natal, e ainda perde a Copa do Mundo. Por que aqui é terra onde político se segura no cipó, pra escapar de pernada! Nessa política baré só tem Judas!

Opa! Aí Judas, citado na conversa que acompanhava de perto, resolveu intervir, sorrindo.

- Pessoal, com licença. Estou acompanhando essa animada conversa entre vocês, mas aí me senti traído na minha condição social. É que vocês falaram tanto aí desses políticos e dessa política que não tem nada de democrática, e no final, compararam eles com Judas. Pois bem, meu nome é Judas! Pega leve aí com a comparação, que eu sou de paz, moçada.

Todos riram, ao que Judas emendou:

- Estou aqui de passagem, não sou da cidade, mas pelo que já vi e ouvi, os políticos daqui são traidores de si mesmos, e de quebra, do povo. Mas aí eu pergunto pra vocês, que são da terra: quando é que o povo vai trair esse pessoal, e passar a apresentar candidatura própria nas eleições?

Homem – Boa pergunta, mano. Por que entra eleição e sai eleição, os candidato são sempre os mesmo. Aí fica difícil escolher. Difícil não, impossível. Não dá pra escolher entre duas coisas, quando elas são igual.

Judas – Ainda mais porque, embora eles aparentem dar rasteira uns nos outros, na hora de defender o lado deles, estão todos juntos. É mentira?

Outro homem – É mermo! Tá aí uma verdade. Na hora que aparece uma ameaçazinha deles perderem a boca, se juntam rapidinho. As rasteiras só num são mais rápida que as aliança que eles fazem. É a tal Ação Conjunta. Que desconjunta a cidade toda tem mais de 30 anos!

Judas (emendando) – Por isso mesmo, o povo tem que romper com essa situação que está aí. Mais que malhar o Judas, o povo tem que encarnar o Judas, e trair esses que aí estão.

Homem – Já que é assim, viva a traição! E viva Judas!

E Judas comungou da alegria daqueles homens, e daquela cidade, e depois voltou para o paraíso, alegre.

Ao chegar, refletindo o que vivenciou, anotou em seu caderno os seguintes dizeres:

“Ao contrário do que imaginava, trair ao outro é sim, possível. Aliás, trair, para o bem ou para o mal, é sempre um ato universal. Ao escolhermos a traição, escolhemos trair por todos e para todos. O político que trai sei povo, trai a si mesmo. E o povo que continua elegendo esses traidores, trai também a si. Há, no entanto, uma traição benéfica. Aquela que aproxima o povo da Democracia. é quando ele trai o estado de coisas constituído, deixando para trás a corrupção e a dor. Trair, nesse caso, é emancipar-se. Portanto, ao povo da cidade que visitei, só posso deixar uma mensagem: Traia os que te traem, Manaus!

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