Três vezes cassado: uma na ditadura, duas na democracia
Eu e Janete, minha companheira, vivemos um absurdo pesadelo kafkiano. Como o personagem do romance O Processo, somos acusados de um crime que não aconteceu – esse crime teria sido a compra de dois votos por R$ 26,00 em duas prestações nas eleições de 2002 – e, pior, estamos pagando duas vezes por este suposto delito.
Sofremos a primeira cassação em 2004. Eleitos mais uma vez pelo povo amapaense com votação consagradora, em outubro passado, acabamos impedidos de tomar posse pelo Tribunal Superior Eleitoral, que nos enquadrou na Lei de Ficha Limpa. Isso num país em que políticos acusados de lavagem de dinheiro, corrupção, desvio de verbas públicas e até de envolvimento com o crime organizado escaparam do enquadramento na Ficha Limpa.
Na verdade, estamos pagando o alto preço de ter ousado enfrentar oligarquias impiedosas e retrógadas. A principal delas é chefiada pelo senador José Sarney, o último dos coronéis, áulico da ditadura que pulou do barco na última hora, governou o Brasil como uma sesmaria e depois, não contente com seu feudo no Maranhão, estendeu suas garras sobre o Amapá. Essa história vem de longe e vale a pena ser contada.
Se bem me lembro, tudo começou numa manhã chuvosa, em abril de 1995. Estava eu no gabinete de governador, quando, pela segunda vez, recebi em audiência um político provinciano que portava um “ultimato” de um político nacional. O governo “tinha” de quitar uma fatura de R$ 8 milhões a uma empreiteira. Repeti-lhe que os cofres do Estado haviam sido saqueados, que não havia dinheiro para nada e que era preciso saber se aquela dívida existia de fato. O portador não esperou a conclusão do meu raciocínio, levantou-se e com dedo em riste vociferou algumas ameaças: “Você tá perdido, o chefe nunca vai te perdoar!”.
Aliado no 2º turno das eleições de 1994, o PMDB do Amapá, comandado pelo senador José Sarney, rompeu com meu governo no meio do ano seguinte alegando descumprimento de acordos de campanha. Em realidade a situação pré-falimentar em que encontrei o Estado não me permitia transigir com a má aplicação dos parcos recursos disponíveis, o que me obrigou a rapidamente afastar o irmão do senador Gilvam Borges da Secretaria de Indústria e Comércio.
O resultado prático dessas decisões políticas foi que Sarney aglutinou na oposição 22 dos 24 deputados estaduais; 7 entre 8 deputados federais; e os três senadores do Estado do Amapá. Um bloqueio de fazer inveja aos americanos em relação a Cuba. Assim, ao longo do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, a quem meu partido fazia oposição, sem o apoio da bancada federal, fui tratado a pão e água. Nesse período, o Amapá foi o estado da federação que menos recursos recebeu das chamadas verbas voluntárias da União.
Para completar o quadro, em outubro 1997, quando o governo do Amapá já estava com a situação financeira equilibrada, a bancada do Estado no Senado realizou uma façanha inusitada: conseguiu fechar por decisão política, através do Banco Central, o Banco do Estado do Amapá (Banap), fato inédito na história da República. Assim, repentinamente, todo o dinheiro do governo e de 20 mil correntistas ficou retido, tendo sido liberado somente um ano depois do fechamento.
Apesar dos obstáculos e do isolamento político, em 1998, fui à reeleição. Ao mesmo tempo, Sarney tentava sua segunda eleição ao Senado pelo Amapá. Na época, vislumbrei a possibilidade de prestar um relevante serviço à sociedade brasileira, apoiando um candidato que o derrotasse nas urnas. Deixei minha campanha ao governo de lado para alavancar meu candidato ao Senado, mas quando ele começou de fato a ameaçar Sarney, fui surpreendido com meu registro de candidato cassado pelo TRE. Daí em diante, uma parte da disputa foi transferido para o TSE, campo onde Sarney é um craque imbatível, e eu me vi afastado do corpo-a-corpo da campanha eleitoral. No final, os dois se reelegeram, eu governador, e Sarney senador.
Cumpri meu segundo mandato aprofundando as políticas públicas fundamentadas na Agenda 21 e nas teses do desenvolvimento sustentável, priorizando as questões socioambientais. A austeridade na aplicação dos recursos e o combate sistemático à corrupção me levaram a tomar duas decisões republicanas fundamentais: a primeira, em 1995, quando bani em definitivo a vergonhosa aposentadoria de ex-governador; e a outra, em 2001, quando coloquei na internet, em tempo real, as receitas e despesas públicas.
Esta experiência pioneira mais tarde marcaria minha curta passagem pelo Senado, onde pude transformá-la em um projeto de Lei. Este projeto, que obriga todos os entes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) a expor seus orçamentos na internet, foi aprovado antes da minha saída do Senado. Sua tramitação e aprovação na Câmara Federal se deram graças ao empenho e determinação de Janete Capiberibe. Em 2009, o projeto foi sancionado pelo presidente da República como Lei complementar 131/2009, conhecida como Lei da Transparência.
Com o orçamento do Estado sendo rigorosamente aplicado nos serviços públicos, os conflitos com os setores corruptos se acirraram, a ponto de a Assembleia Legislativa do Amapá decretar ilegalmente meu impedimento, ato imediatamente revogado pelo Supremo Tribunal Federal. Quando, em 5 de abril de 2002, deixei o governo para me candidatar ao Senado, a máquina do Estado estava, enfim, sem dívidas e com R$ 56 milhões em caixa.
Naquele ano, mesmo concorrendo isolado e sofrendo forte oposição, fui eleito senador e minha companheira Janete deputada federal, aliás, eleita com uma votação histórica, até hoje só superada por ela própria, em eleições subsequentes. O PMDB não acatou a decisão popular: vinte dias depois de proclamado o resultado, entrou com um pedido de investigação eleitoral nos acusando da compra de dois – isso mesmo, dois! – votos. O Ministério Público Eleitoral não acatou a denúncia e o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Amapá nos absolveu.
O PMDB então recorreu, transferindo o jogo para o TSE, arena em que o mais longevo dos políticos brasileiros nunca perdeu uma, veja-se o caso emblemático de sua primeira candidatura ao Senado pelo Amapá. Depois de deixar a presidência, em 15 de março de 1990, Sarney, sem legenda pra disputar o Senado no Maranhão, correu para o jovem Estado do Amapá, onde não possuía o domicilio eleitoral obrigatório de um ano, como previsto em lei. O aliado de hoje, Gilvam Borges, moveu contra ele ação de impugnação eleitoral, que não deu em nada, pois, como sabemos, Sarney não é um cidadão comum, e as leis, como veremos mais adiante, são de grande utilidade apenas para enquadrar seus adversários.
Na última semana de abril de 2004, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgou o recurso do PMDB. A acusação de compra de voto era sustentada pelas declarações de duas mulheres humildes, que também declararam não nos conhecer, ambas registradas, com redação absolutamente igual, em um mesmo cartório do Amapá. Coincidentemente, os advogados das mulheres eram funcionários do Senado, ou seja, subordinados ao presidente do Congresso, José Sarney.
O relator do processo conseguiu convencer seus pares da cassação dos nossos mandatos. Entretanto, permanecemos no mandato até dezembro de 2005 graças a um recurso concedido pelo STF. Naquele ano, o PMDB impetrou uma questão de ordem e o STF, num julgamento extremamente dividido, com três ministros decidindo pelo nosso afastamento imediato dos mandatos e três pela nossa permanência, nos afastou graças ao voto de minerva do então ministro Nelson Jobim.
Privados dos mandatos, voltamos para a militância de base no Amapá. Em 2006, sem qualquer vínculo ou apoio na esfera federal, estadual ou municipal, e sem alianças, fui novamente candidato ao governo do Estado do Amapá pelo PSB. Tinha 1m15s de tempo no rádio e na televisão, contra 18m45s dos adversários. Janete disputou uma vaga à Câmara Federal. Além da disputa ao governo, apoiei com afinco a candidatura ao Senado de Cristina Almeida, mulher, negra e destemida, cuja missão em sua primeira candidatura foi encarar o último dos oligarcas. Pela primeira vez Sarney teve de se dedicar inteiramente à sua campanha no Estado. Aprendeu a ginga do marabaixo, dança de origem africana, e passou a se apresentar na televisão com cara de humilde penitente, suplicando votos. Escapou por milagre e obteve seu terceiro mandato pelo Amapá, Estado onde, de fato, nunca viveu. Dessa desigual disputa, terminei derrotado, mas Janete, uma vez mais, recebeu votação consagradora, com 10,35% dos votos dos eleitores amapaenses para a Câmara Federal.
Finalmente, chegamos a 2010. Depois da convenção partidária do PSB, o TRE aceitou nossos pedidos de registro de candidatura. O Ministério Público Estadual e dois adversários contestaram a decisão por meio de recursos que pediam nosso enquadramento na “Lei da Ficha Limpa” em função da cassação de 2002. O TRE negou-lhes os recursos e nos considerou aptos a concorrer. O MPE e um preposto do PMDB recorreram ao TSE, que por decisões monocráticas, tomadas em datas diferentes, cassou nossos registros – veredicto que mais tarde foi confirmado pelo plenário daquele tribunal. No meu caso, perdi o direito de concorrer no dia 30 de setembro, 48 horas antes da eleição.
Além dos argumentos relativos à constitucionalidade da aplicação da Ficha Limpa retroativamente – ainda pendente de decisão final no STF –, fundamentamos nossa defesa no fato de que, em 2002, não fomos condenados à inelegibilidade, no entanto a nova lei instituiu a inelegibilidade de oito anos a contar da eleição que deu origem à punição, portanto, no dia 3 de outubro de 2010, quando os eleitores sufragaram nossos nomes, já havíamos cumprido a nova pena estabelecida, logo, estávamos elegíveis. Mas o TSE não entendeu assim e nos deixou na insólita situação de pagar duas vezes pelo mesmo delito – uma aberrante negação dos preceitos do Estado Democrático de Direito.
A verdade sobre a farsa da compra dos dois votos, contudo, veio à tona em novembro passado, mais de um mês depois das eleições. O ex-cinegrafista Roberval Coimbra Araújo, que trabalhava em uma TV da família de Gilvam Borges, revelou ao jornal Folha de S. Paulo que, em 2002, a mando do senador, arranjou as falsas testemunhas para nos acusar de compra de votos. Ainda segundo Araújo, em troca do falso testemunho registrado em cartório, elas receberam casas e uma “mesada” de R$ 2.000,00. O dinheiro foi passado a Roberval por um irmão de Gilvam Borges. Dias depois, como nas histórias da Máfia, o ex-cinegrafista sofreria um atentado, tendo sido esfaqueado por um suposto assaltante. Felizmente, ele sobreviveu e manteve o depoimento, mas, estranhamente, a polícia na época não abriu nenhum inquérito.
Finalmente, concluo fazendo uma breve lembrança de tempos mais sombrios, quando fomos caçados pela primeira vez. É isso mesmo, não é erro ortográfico, é com “ç” mesmo. Militantes de esquerda nos anos 1960 e 1970, eu e Janete fomos presos e torturados pela ditadura militar. Pelo “crime” de lutar por um país mais justo, fui condenado a seis anos de prisão e à perda dos direitos políticos pelo mesmo período.
Ironicamente, em 1o de fevereiro de 2011, dia em que deveria ter sido empossada deputada federal pela terceira vez consecutiva, Janete recebeu a carta oficial da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça reconhecendo que ela havia sido vítima da ditadura militar e, portanto, é merecedora de reparação.
Pelo “crime” de desafiar a oligarquia de Sarney, eu e Janete fomos condenados a perder nossos mandatos. Será que teremos de lutar por mais quarenta anos para que esta injustiça seja reparada pelo Estado brasileiro?
João Capiberibe é senador eleito pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) no Amapá, Estado do qual foi governador de 1995 a 2002. Autor da Lc 131/2009, Lei da Transparência.
Eu e Janete, minha companheira, vivemos um absurdo pesadelo kafkiano. Como o personagem do romance O Processo, somos acusados de um crime que não aconteceu – esse crime teria sido a compra de dois votos por R$ 26,00 em duas prestações nas eleições de 2002 – e, pior, estamos pagando duas vezes por este suposto delito.
Sofremos a primeira cassação em 2004. Eleitos mais uma vez pelo povo amapaense com votação consagradora, em outubro passado, acabamos impedidos de tomar posse pelo Tribunal Superior Eleitoral, que nos enquadrou na Lei de Ficha Limpa. Isso num país em que políticos acusados de lavagem de dinheiro, corrupção, desvio de verbas públicas e até de envolvimento com o crime organizado escaparam do enquadramento na Ficha Limpa.
Na verdade, estamos pagando o alto preço de ter ousado enfrentar oligarquias impiedosas e retrógadas. A principal delas é chefiada pelo senador José Sarney, o último dos coronéis, áulico da ditadura que pulou do barco na última hora, governou o Brasil como uma sesmaria e depois, não contente com seu feudo no Maranhão, estendeu suas garras sobre o Amapá. Essa história vem de longe e vale a pena ser contada.
Se bem me lembro, tudo começou numa manhã chuvosa, em abril de 1995. Estava eu no gabinete de governador, quando, pela segunda vez, recebi em audiência um político provinciano que portava um “ultimato” de um político nacional. O governo “tinha” de quitar uma fatura de R$ 8 milhões a uma empreiteira. Repeti-lhe que os cofres do Estado haviam sido saqueados, que não havia dinheiro para nada e que era preciso saber se aquela dívida existia de fato. O portador não esperou a conclusão do meu raciocínio, levantou-se e com dedo em riste vociferou algumas ameaças: “Você tá perdido, o chefe nunca vai te perdoar!”.
Aliado no 2º turno das eleições de 1994, o PMDB do Amapá, comandado pelo senador José Sarney, rompeu com meu governo no meio do ano seguinte alegando descumprimento de acordos de campanha. Em realidade a situação pré-falimentar em que encontrei o Estado não me permitia transigir com a má aplicação dos parcos recursos disponíveis, o que me obrigou a rapidamente afastar o irmão do senador Gilvam Borges da Secretaria de Indústria e Comércio.
O resultado prático dessas decisões políticas foi que Sarney aglutinou na oposição 22 dos 24 deputados estaduais; 7 entre 8 deputados federais; e os três senadores do Estado do Amapá. Um bloqueio de fazer inveja aos americanos em relação a Cuba. Assim, ao longo do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, a quem meu partido fazia oposição, sem o apoio da bancada federal, fui tratado a pão e água. Nesse período, o Amapá foi o estado da federação que menos recursos recebeu das chamadas verbas voluntárias da União.
Para completar o quadro, em outubro 1997, quando o governo do Amapá já estava com a situação financeira equilibrada, a bancada do Estado no Senado realizou uma façanha inusitada: conseguiu fechar por decisão política, através do Banco Central, o Banco do Estado do Amapá (Banap), fato inédito na história da República. Assim, repentinamente, todo o dinheiro do governo e de 20 mil correntistas ficou retido, tendo sido liberado somente um ano depois do fechamento.
Apesar dos obstáculos e do isolamento político, em 1998, fui à reeleição. Ao mesmo tempo, Sarney tentava sua segunda eleição ao Senado pelo Amapá. Na época, vislumbrei a possibilidade de prestar um relevante serviço à sociedade brasileira, apoiando um candidato que o derrotasse nas urnas. Deixei minha campanha ao governo de lado para alavancar meu candidato ao Senado, mas quando ele começou de fato a ameaçar Sarney, fui surpreendido com meu registro de candidato cassado pelo TRE. Daí em diante, uma parte da disputa foi transferido para o TSE, campo onde Sarney é um craque imbatível, e eu me vi afastado do corpo-a-corpo da campanha eleitoral. No final, os dois se reelegeram, eu governador, e Sarney senador.
Cumpri meu segundo mandato aprofundando as políticas públicas fundamentadas na Agenda 21 e nas teses do desenvolvimento sustentável, priorizando as questões socioambientais. A austeridade na aplicação dos recursos e o combate sistemático à corrupção me levaram a tomar duas decisões republicanas fundamentais: a primeira, em 1995, quando bani em definitivo a vergonhosa aposentadoria de ex-governador; e a outra, em 2001, quando coloquei na internet, em tempo real, as receitas e despesas públicas.
Esta experiência pioneira mais tarde marcaria minha curta passagem pelo Senado, onde pude transformá-la em um projeto de Lei. Este projeto, que obriga todos os entes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) a expor seus orçamentos na internet, foi aprovado antes da minha saída do Senado. Sua tramitação e aprovação na Câmara Federal se deram graças ao empenho e determinação de Janete Capiberibe. Em 2009, o projeto foi sancionado pelo presidente da República como Lei complementar 131/2009, conhecida como Lei da Transparência.
Com o orçamento do Estado sendo rigorosamente aplicado nos serviços públicos, os conflitos com os setores corruptos se acirraram, a ponto de a Assembleia Legislativa do Amapá decretar ilegalmente meu impedimento, ato imediatamente revogado pelo Supremo Tribunal Federal. Quando, em 5 de abril de 2002, deixei o governo para me candidatar ao Senado, a máquina do Estado estava, enfim, sem dívidas e com R$ 56 milhões em caixa.
Naquele ano, mesmo concorrendo isolado e sofrendo forte oposição, fui eleito senador e minha companheira Janete deputada federal, aliás, eleita com uma votação histórica, até hoje só superada por ela própria, em eleições subsequentes. O PMDB não acatou a decisão popular: vinte dias depois de proclamado o resultado, entrou com um pedido de investigação eleitoral nos acusando da compra de dois – isso mesmo, dois! – votos. O Ministério Público Eleitoral não acatou a denúncia e o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Amapá nos absolveu.
O PMDB então recorreu, transferindo o jogo para o TSE, arena em que o mais longevo dos políticos brasileiros nunca perdeu uma, veja-se o caso emblemático de sua primeira candidatura ao Senado pelo Amapá. Depois de deixar a presidência, em 15 de março de 1990, Sarney, sem legenda pra disputar o Senado no Maranhão, correu para o jovem Estado do Amapá, onde não possuía o domicilio eleitoral obrigatório de um ano, como previsto em lei. O aliado de hoje, Gilvam Borges, moveu contra ele ação de impugnação eleitoral, que não deu em nada, pois, como sabemos, Sarney não é um cidadão comum, e as leis, como veremos mais adiante, são de grande utilidade apenas para enquadrar seus adversários.
Na última semana de abril de 2004, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgou o recurso do PMDB. A acusação de compra de voto era sustentada pelas declarações de duas mulheres humildes, que também declararam não nos conhecer, ambas registradas, com redação absolutamente igual, em um mesmo cartório do Amapá. Coincidentemente, os advogados das mulheres eram funcionários do Senado, ou seja, subordinados ao presidente do Congresso, José Sarney.
O relator do processo conseguiu convencer seus pares da cassação dos nossos mandatos. Entretanto, permanecemos no mandato até dezembro de 2005 graças a um recurso concedido pelo STF. Naquele ano, o PMDB impetrou uma questão de ordem e o STF, num julgamento extremamente dividido, com três ministros decidindo pelo nosso afastamento imediato dos mandatos e três pela nossa permanência, nos afastou graças ao voto de minerva do então ministro Nelson Jobim.
Privados dos mandatos, voltamos para a militância de base no Amapá. Em 2006, sem qualquer vínculo ou apoio na esfera federal, estadual ou municipal, e sem alianças, fui novamente candidato ao governo do Estado do Amapá pelo PSB. Tinha 1m15s de tempo no rádio e na televisão, contra 18m45s dos adversários. Janete disputou uma vaga à Câmara Federal. Além da disputa ao governo, apoiei com afinco a candidatura ao Senado de Cristina Almeida, mulher, negra e destemida, cuja missão em sua primeira candidatura foi encarar o último dos oligarcas. Pela primeira vez Sarney teve de se dedicar inteiramente à sua campanha no Estado. Aprendeu a ginga do marabaixo, dança de origem africana, e passou a se apresentar na televisão com cara de humilde penitente, suplicando votos. Escapou por milagre e obteve seu terceiro mandato pelo Amapá, Estado onde, de fato, nunca viveu. Dessa desigual disputa, terminei derrotado, mas Janete, uma vez mais, recebeu votação consagradora, com 10,35% dos votos dos eleitores amapaenses para a Câmara Federal.
Finalmente, chegamos a 2010. Depois da convenção partidária do PSB, o TRE aceitou nossos pedidos de registro de candidatura. O Ministério Público Estadual e dois adversários contestaram a decisão por meio de recursos que pediam nosso enquadramento na “Lei da Ficha Limpa” em função da cassação de 2002. O TRE negou-lhes os recursos e nos considerou aptos a concorrer. O MPE e um preposto do PMDB recorreram ao TSE, que por decisões monocráticas, tomadas em datas diferentes, cassou nossos registros – veredicto que mais tarde foi confirmado pelo plenário daquele tribunal. No meu caso, perdi o direito de concorrer no dia 30 de setembro, 48 horas antes da eleição.
Além dos argumentos relativos à constitucionalidade da aplicação da Ficha Limpa retroativamente – ainda pendente de decisão final no STF –, fundamentamos nossa defesa no fato de que, em 2002, não fomos condenados à inelegibilidade, no entanto a nova lei instituiu a inelegibilidade de oito anos a contar da eleição que deu origem à punição, portanto, no dia 3 de outubro de 2010, quando os eleitores sufragaram nossos nomes, já havíamos cumprido a nova pena estabelecida, logo, estávamos elegíveis. Mas o TSE não entendeu assim e nos deixou na insólita situação de pagar duas vezes pelo mesmo delito – uma aberrante negação dos preceitos do Estado Democrático de Direito.
A verdade sobre a farsa da compra dos dois votos, contudo, veio à tona em novembro passado, mais de um mês depois das eleições. O ex-cinegrafista Roberval Coimbra Araújo, que trabalhava em uma TV da família de Gilvam Borges, revelou ao jornal Folha de S. Paulo que, em 2002, a mando do senador, arranjou as falsas testemunhas para nos acusar de compra de votos. Ainda segundo Araújo, em troca do falso testemunho registrado em cartório, elas receberam casas e uma “mesada” de R$ 2.000,00. O dinheiro foi passado a Roberval por um irmão de Gilvam Borges. Dias depois, como nas histórias da Máfia, o ex-cinegrafista sofreria um atentado, tendo sido esfaqueado por um suposto assaltante. Felizmente, ele sobreviveu e manteve o depoimento, mas, estranhamente, a polícia na época não abriu nenhum inquérito.
Finalmente, concluo fazendo uma breve lembrança de tempos mais sombrios, quando fomos caçados pela primeira vez. É isso mesmo, não é erro ortográfico, é com “ç” mesmo. Militantes de esquerda nos anos 1960 e 1970, eu e Janete fomos presos e torturados pela ditadura militar. Pelo “crime” de lutar por um país mais justo, fui condenado a seis anos de prisão e à perda dos direitos políticos pelo mesmo período.
Ironicamente, em 1o de fevereiro de 2011, dia em que deveria ter sido empossada deputada federal pela terceira vez consecutiva, Janete recebeu a carta oficial da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça reconhecendo que ela havia sido vítima da ditadura militar e, portanto, é merecedora de reparação.
Pelo “crime” de desafiar a oligarquia de Sarney, eu e Janete fomos condenados a perder nossos mandatos. Será que teremos de lutar por mais quarenta anos para que esta injustiça seja reparada pelo Estado brasileiro?
João Capiberibe é senador eleito pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) no Amapá, Estado do qual foi governador de 1995 a 2002. Autor da Lc 131/2009, Lei da Transparência.
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